12 de mai. de 2010

Discussão sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência no Conade

Relatório do GT de Sistematização dos subsídios colhidos nos
Seminários Regionais

 
      Brasília, 08 de abril de 2010


_______Justificativa 

      O grupo decidiu registrar os principais pontos polêmicos identificados nas diferentes minutas de estatuto já elaboradas, incluindo os subsídios dos seminários regionais que foram realizados de 28 de setembro de 2009 a 13 de novembro de 2009, com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo1. O que se obteve de resultado não demonstrou consenso em muitos âmbitos e essa preocupação foi sintetizada no presente Relatório. Persiste o desafio de elaboração de uma minuta que possa ser apresentada como Substitutivo e a necessidade da garantia de maior debate com a sociedade civil para o aprimoramento do processo democrático.

      Nesse contexto, surgiu a oportunidade de se fazer uma audiência pública na Câmara dos Deputados, por meio da Comissão de Direitos Humanos, presidida pela Deputada Federal Iriny Lopes (PT/ES), para se discutir as polêmicas que envolvem o tema, o que reforça a importância desse registro.

      O grupo se reuniu, pois, para avaliar essa possibilidade de realização da audiência pública com a assessoria parlamentar da SEDH representada por Valéria Getúlio, e com a Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, representada por Izabel Maior e Ana Beatriz Praxedes. Na ocasião, foi ponderado que a audiência pode ser realizada se o processo for colocado em pauta no Congresso Nacional, chamando a atenção dos parlamentares para as questões polêmicas e a ausência de consenso existente no segmento das pessoas com Deficiência.

      Na continuidade do processo de elaboração de uma minuta de projeto de lei sobre os direitos das pessoas com deficiência, as discussões apontaram para a necessidade do envolvimento dos Ministérios com o objetivo de que a construção seja otimizada, em especial, com representação do Ministério da Justiça (SAL – Secretaria de Assuntos Legislativos) e da Casa Civil (SAG – Secretaria de Articulação de Governo), entre outros.

      Para tanto, se discutiu sobre a possibilidade de composição de um grupo de trabalho com participação governamental, que poderão ser ou não Conselheiros do CONADE, alem dos demais Conselheiros da sociedade civil do CONADE que já estão envolvidos nesse processo. Com vistas a operacionalizar esse encaminhamento, deverá ser agendada uma reunião com a SEDH para articular, com o CONADE e a Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. A premissa do consenso deve ser a tônica prevalecente no processo.

      Decidiu-se, dessa forma, seguir com o grupo buscando elaborar nova minuta de projeto de lei, a partir do modelo social de direitos humanos acerca das pessoas com deficiência, que sirva para regulamentar dispositivos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, suprindo lacunas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Há propostas elaboradas por entidades da sociedade civil que poderão ser utilizadas como base para o grupo de trabalho, com vistas ao seu aperfeiçoamento.   

      Para socializar as principais discussões havidas no grupo com a Plenária do CONADE e solicitar sua ratificação para os novos encaminhamentos na próxima reunião ordinária, se formula esse documento, que também será utilizado em Nota Técnica do Governo Federal com o intuito de explicar o processo havido no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, especialmente visibilizando o cumprimento das etapas, o exame do CONADE, levantamento dos itens de convergência e divergência e as alternativas que o Conselho apresenta como encaminhamentos do processo, em articulação com o Congresso Nacional.

      Em maio de 2010, conforme combinado com os parlamentares, o CONADE deverá novamente se reunir com os interessados da Câmara e do Senado para informar dos avanços e desafios do processo, repactuando encaminhamentos e prazos, se necessário.  

_______Integrantes do Grupo de Trabalho (“GT”)

    Alexandre Mapurunga (Conselhos Estaduais)
    Isaias Dias (CUT)
    Laís de Figueirêdo Lopes (OAB) - relatora
    Kellerson Viana (Conselhos Municipais)
    Maria do Carmo Tourinho (ABRA)
    Márcio Aguiar (CVI)
    Moisés Bauer (ONCB)
    Roberto Tiné  (APABB)
    Rosangela Santos (FARBRA)
    Silvana Almeida (AMPID)
    Valdenora Rodrigues (Mohan)


_______Histórico do trabalho

      Foram realizadas três reuniões nas seguintes datas:
    22 e 23 de fevereiro de 2010
    09 a 12 de março de 2010
    07 a 09 de abril de 2010

_______Descrição das polêmicas 

  1. Conceito de Pessoa com Deficiência (art. 2o. da CRPD)

      O conceito aberto pode levar a interpretações subjetivas. Dessa forma, é  importante colocar detalhadamente quem é considerado pessoa com deficiência para fins de direito.

      No caso da deficiência intelectual, é preciso esclarecer a interface com a saúde mental e decidir se os transtornos invasivos do desenvolvimento, além da epilepsia, esquizofrenia, dislexia, entre outros, são considerados deficiências.

      Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência prevê a deficiência mental e intelectual e esses dois tipos podem ser considerados sinônimos ou regulamentados diferentemente. A legislação atual dispõe sobre a deficiência mental. A atualização de conceitos é necessária.   

      Sobre a deficiência visual, reside ainda a polêmica das pessoas com visão monocular. A  Súmula 377/08 do Superior Tribunal de Justiça admite que são assim consideradas. Ocorre que há quem não entenda da mesma forma, uma vez que a ausência de um dos olhos não traduz a limitação funcional de enxergar da mesma forma como o faz a cegueira ou a baixa visão.

      Discute-se a necessidade de que a surdocegueira seja reconhecida na lei como um tipo de deficiência pelas suas particularidades que não são apenas a soma da deficiência auditiva com a visual. Dessa forma, visibilizando a sua existência, políticas públicas específicas poderão ser endereçadas para apoiar a sua inclusão na sociedade. 


  1. Capacidade legal (art. 12 e 23 da CRPD)

      Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência determina que todas as pessoas, independentemente de sua limitação funcional, têm a capacidade de serem titulares de direitos e de exercerem os mesmos direitos.

      Na prática, a sociedade brasileira culturalmente ainda está muito despreparada para garantir a implementação dessa premissa para alguns tipos de deficiência, especialmente a intelectual. 

      O instituto jurídico da interdição deverá ser objeto de discussão, sendo necessário refletir sobre que tipos de direitos devem ser salvaguardados e quais poderão ser exercidos. A interdição parcial, que se apresenta como uma alternativa poderia, por exemplo, garantir o direito ao trabalho, ao voto, a constituir família, entre outros. Mas sem critérios legais mais detalhados, os juízes acabam sentenciando a interdição total, muitas vezes considerada necessária. 


  1. Educação (art. 24 da CRPD)

      A ruptura com o modelo anterior de educação para pessoas com deficiência – denominada de educação especial – tem gerado polêmica ainda no país. Isso porque a orientação normativa prevista na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do Governo Federal segue a linha da educação inclusiva, com o consequente provimento de apoios necessários para que isso aconteça.

      No entanto, muitos questionam que, durante o processo de transição, as escolas não estão preparadas. Dessa forma, está sendo rediscutido o papel das escolas especiais, que se modifica de protagonistas da educação de pessoas com deficiência para exercer função complementar no contraturno.

      Há  uma polêmica grande no caso dos surdos que requerem o direito de serem educados em Libras em escolas próprias. Igualmente a representação de pessoas com deficiência intelectual severa têm ainda preferido o modelo especial pelas dificuldades subjetivas de inclusão e socialização eventualmente existentes.     

      Discute-se a necessidade sine qua non de adaptação de projeto pedagógico para inclusão e de material didático acessível e de apoio.

      Outro ponto muito importante é que as medidas de acessibilidade deverão ser para a educação em todos níveis, com especial atenção para educação infantil, que na maior parte das vezes é esquecida quando se trata de crianças com deficiência.


  1. Reabilitação (art. 26 da CRPD)

      A despeito de existir a previsão do direito a reabilitação na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência essa ainda não é uma realidade brasileira. Nesse sentido, deve-se fortalecer a obrigatoriedade de que sejam implementados serviços públicos focados na reabilitação de pessoas com deficiência.

      Para tanto, se identifica também a necessidade de distinguir a reabilitação profissional da habilitação para que as políticas públicas possam ser corretamente concebidas e implantadas. 

      Uma questão polêmica nesse ponto também são os modelos propostos de reabilitação para pessoas com deficiência. Há propostas de manutenção de oficina protegida e trabalho apoiado que vão contra a tendência do modelo inclusivo.  




  1. Trabalho e Emprego (art. 27 da CRPD)

      A política afirmativa de cotas para ingresso de pessoas com deficiência no mercado de trabalho tem alicerce na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 27, I, h). Os percentuais conquistados poderão ser questionados no Congresso Nacional e essa é uma preocupação do segmento: não perder direitos conquistados.

      Dessa forma, a alteração no percentual só poderia ser admitida pelo segmento se fosse para ampliar os postos de trabalhos para pessoas com deficiência. Uma das ideias seria reduzir a primeira faixa de valor de 100 para 50 funcionários. Outra seria de aplicar o percentual de 5% para todas as faixas. 

      Além disso, um desafio que se coloca é como incluir as micro e pequenas empresas também como empregadores obrigatórios e se terceirização ingressaria na cota ou não.

      Para o setor público, há necessidade de prever a reserva para os cargos públicos, inclusive os comissionados. Os concursos deverão ser realizados para preencher as vagas calculadas.

      A qualificação profissional tem sido um tema difícil na área, pois muitos empregadores dizem que não encontram pessoas com deficiência aptas ao mercado de trabalho. É importante que essa obrigação seja definida como co-responsabilidade do Estado e da empresa.

       A equiparacão de carreira e salários constitui também uma questão importante para ser novamente prevista na legislação sob a perspectiva da não discriminação no trabalho.

      Por fim, outra obrigação que merece atenção é a necessidade de  adaptações razoáveis e acessibilidade no ambiente laboral.

  1. Cultura, Esporte, Turismo e Lazer (art. 30 da CRPD)

      A questão da implementacação da audiodescrição no Brasil está regulamentada somente em portarias do Ministério da Comunicação. A primeira, de n.° 310/06, previa dois anos para entrada em vigor. Findo este prazo, uma sucessão de atos normativos foram editados prorrogando a sua implementação, por conta da resistência das emissoras de TV que alegam ônus do recurso. A última foi a Portaria n.° 188/10, que prorrogou de novo os prazos. Se continuar dessa forma, ao final de 11 anos, vai se chegar a 20 horas semanais apenas na TV Digital. O segmento gostaria de ver garantido maior tempo de programação com audiodescrição na TV, além de ter a obrigatoriedade em outros espaços, como o cinema, apresentações teatrais etc.  Ademais, essas prorrogações também adiam a possibilidade do exercício do direito a acessibilidade conquistado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

      A regulamentação da lei que trata da política nacional do livro continua em negociação, com bastante resistência das editoras. O leitor com deficiência visual pretende adquirir obras de sua preferência em formato acessível diretamente das livrarias e/ou editoras. O formato digital está dentro do conceito de desenho universal e beneficia também as pessoas com deficiência física severa e as pessoas com dislexia. O ideal seria prever a obrigatoriedade de provimento de formatos acessíveis de maneira expressa na legislação vigente.

      Um ponto que tangencia essa discussão é a proteção dos direitos autorais. Na Lei 9.610/98 há previsão de que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de obras para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual em suporte adequado para esse público, com fins não comerciais. Ocorre que esse dispositivo direciona as pessoas com deficiência para as instituições sem fins lucrativos que acabam centralizando a produção dos livros e desobrigando as editoras a fornecer diretamente ao público interessado. A pessoa com deficiência também é consumidora e quer adquirir produtos e serviços nos formatos que lhes sejam adequados.     

      Importante prever também a necessidade de investimento em políticas públicas de esporte como ferramenta de qualidade de vida e não só como desporto de alto rendimento. Da mesma forma, faz-se necessário prever como operacionalizar a acessibilidade de bens culturais e destinos turísticos, com investimentos públicos e privados.


  1. Transporte

      A política de passe livre tem como um dos critérios para a concessão o recorte de renda. Há quem defenda que não seria necessário uma vez que bastaria a pessoa ter uma deficiência para ser beneficiária. De toda forma, ainda que se admita como premissa o critério de renda, também se questiona qual seria o recorte. No âmbito nacional hoje é um salário per capita. Pela realidade brasileira, deveria ser per capita? Uma proposta seria ter um teto de até cinco salários mínimos. 

      Outra questão é que as frotas de ônibus ainda não estão acessíveis. A lei vigente deveria prever sanções mais rígidas para a não-adequação da frota.

  1.  Crimes e Acesso a Justiça (art. 2, 5 e 13 da CRPD)

      Quanto aos crimes, se identifica a necessidade de tipificar a não-discriminação, nos termos do conceito trazido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Além disso, há poucos tipos penais referentes a crimes cometidos contra pessoas com deficiência que devem ser previstos na legislação, incluindo os qualificadores de agravamento de pena.  

      Não se tem consenso se deve ser criadas varas especializadas para endereçar os direitos das pessoas com deficiência. É preciso pensar nas experiências das demais áreas para avaliar se seria o caso. Para as mulheres, houve um grande avanço institucional por conta da fragilidade que havia antes da Lei Maria da Penha. Para as pessoas com deficiência, a questão é diferente. já há garantia da prioridade de tramitação de processos. O que falta para garantir o acesso à justiça tem mais fundamento no provimento de recursos de acessibilidade do que na necessidade de um local especializado para cuidar de questões apenas de pessoas com deficiência.

      Os conselhos análogos aos tutelares já se entende que não são necessários. As pessoas com deficiência não necessariamente precisam ser tuteladas. No caso das crianças com deficiência já estariam abrangidas pelos existentes.

  1. Monitoramento da Convenção (art. 33 da CRPD)

      Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência prevê a necessidade de que cada Estado Parte tenha um ou mais mecanismo independente para promover, proteger e monitorar os seus princípios e direitos, devendo a sociedade civil, por meio de suas organizações representativas, estarem envolvidas. Qual seria a composição desse mecanismo? O CONADE poderia ser considerado como tal? Ou a lei deveria prever outro organismo que tivesse maior autonomia? Esses são alguns dos questionamentos que se faz acerca do tema.

  1. Assistência Social

      Os critérios para concessão do Benefício de Prestação Continuada hoje estão baseados na incapacidade laborativa e na renda global da família da pessoa com deficiência.  Com o novo modelo social de direitos humanos que considera a deficiência como resultante de aspectos relacionados à interação da pessoa no ambiente onde está inserida, é necessário que sejam revistos os critérios para a concessão do benefício. Há sugestão de se fazer analogia com o Estatuto do Idoso que não computa a renda de outro membro da família. Mudar esse critério vai mexer no orçamento e pode ser um ponto é de difícil acordo com o governo.

      Faltam políticas públicas específicas que dêem conta do atendimento as pessoas com deficiência, especialmente as com deficiência intelectual, tais como o exercício de atividades em centros de convivência, oficinas terapêuticas, moradia em casas-lares, residências protegidas e/ou inclusivas. É necessário que o texto de nova lei enfrente esse tema também.

  1. Necessidade de ter ou não o Estatuto da Pessoa com Deficiência

      Durante a realização dos Seminários Regionais, a polêmica acerca da necessidade ou não de se criar um Estatuto da Pessoa com Deficiência voltou à  tona. Nesse sentido, encontram-se alguns entendimentos.

      Um entendimento destaca a desnecessidade de norma que tenha o rótulo de estatuto, tendo em vista o fato de se tratar de segmento não vulnerável como aqueles que têm, hoje, um estatuto a lhes proteger, notadamente, os idosos e as crianças. Igualmente defendem que já há no ordenamento jurídico dispositivos legais suficientes para dispensar a edição de uma nova lei que, nesse raciocínio, colocaria em xeque direitos já conquistados, oportunizando o debate que poderia ser influenciado por interesses não tão públicos.   

      Outro pensa que o Estatuto é fundamental, nesse formato, e com o texto hoje em trâmite no Congresso Nacional, para que se garantam mais vastamente os direitos das pessoas com deficiência, tendo em vista a sua suposta fragilidade nos atuais diplomas legais. Nessa linha, tem ainda os que afirmam que o estatuto é necessário, mas com texto alternativo discutido amplamente com participação da sociedade civil, descartando os textos hoje existentes, face a discrepância e exageros neles existentes.

      De qualquer forma, no caso de vinda a lume de nova legislação que promova e defenda dos direitos das pessoas com deficiência, é premissa que esta preencha lacunas existentes na legislação atual e não regrida em relação aos direitos já conquistados, tendo por parâmetro as normas contidas na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. 

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